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Texto: Isabel Minhós Martins. Ilustrações: Madalena Matoso. Editora: Planeta Tangerina. Gosto de andar por aí. Desço as escadas a correr, salt o os degraus dois a dois e num instante entro na rua. Na rua não há tecto. Sopra o v en to. Às vezes chove, às vezes faz so l.
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Texto: Isabel Minhós Martins Ilustrações: Madalena Matoso Editora: Planeta Tangerina
Gosto de andar por aí. Desço as escadas a correr, salto os degraus dois a dois e num instante entro na rua. Na rua não há tecto. Sopra o vento. Às vezes chove, às vezes faz sol. Na rua não há paredes. Há estradas, muros e lugares, mas o mundo é enorme (acho que não tem fim).
Às vezes ando por aí com o meu avô. “Vamos só ali” diz ele, “não demoramos mesmo nada…”, mas eu já sei que andar por aí quer dizer a manhã toda. “E o que vão vocês fazer?”, a minha mãe a perguntar. “Nada deespecial”, dizemos nós, a porta já afechar-se, a rua toda pela frente.
No Verão levo um chapéu e os joelhos vão à mostra, prontos a cair sem rede e a esfolar-se no alcatrão. No Inverno levo sempre dez camadas de agasalhos, mas ao fim de poucos metros começo a tirar as camisolas. “Que exageradas são as mães”, o meu avô encolhendo os ombros, sem sequer olhar para trás. Nunca vira o pescoço, nunca espera por mim, nunca me dá grande atenção. Já sei que é assim, e assim é que é bom.
O meu avô vai andando e eu acompanho-o. Dou passos grandes, passos pequeninos, arrasto os pés pelo chão, dou dez voltas ao sinal proibido, conto os pinos do passeio e, quando chego ao 23, digo, contente: “Já são mais do que os meninos da minha sala!”.
Também vejo o meu reflexo nas montras, tento enganar a minha sombra, piso folhas, leio letras, faço equilibrismos impossíveis na beirinha dos passeios. “Cuidado não torças um pé”, avisa o meu avô. (Diz que tem um olho na parte de trás da cabeça e eu já quase que acredito.)
Paramos muitas vezes, quando vou com o meu avô. “Como vai a sua senhora, como vai este e aquele…” E enquanto o meu avô conversa, as aventuras continuam. Trepo a um monte de areia (e trago outro monte nos sapatos). Salto poças e às vezes falho (“já viste o estado em que vens?”).
Procuro paus e, de entre todos, escolho o mais afiado para fazer um risco no chão. Divido assim o mundo. Desenho um caracol, um círculo para me prender. E depois vou traçando no chão um rasto, à minha passagem, para que me possam encontrar, em caso de me perder. (Já vi isto numa história… é capaz de resultar).
Mas sempre a voz da minha mãe: “Cá em casa não entram paus… Mas na rua também não entram mães (quando vou com o meu avô). Por isso nunca largo este pau. Esta espada, esta bandeira, este remo de jangada. Remo, remo por aí. E, às vezes já estou longe daqui, quando oiço o meu avô.
Tem um assobio que se ouve duas ruas acima da minha: “Mas o miúdo é algum cão?” (as vizinhas escandalizadas). Mas eu não me importo nada de ser assim assobiado.
Há dias em que me apetece caminhar devagarinho, a ver tudo, distraído. Uma minhoca a trepar um muro, aflita… (dou-lhe uma ajuda para chegar mais depressa a casa).
Uma pedra afiada que julgo ser do tempo da Pré-história. Um muro rugoso, por ondea minha mão passeia. Ou um cão que salta, de repente, atrás da grade de um portão. (E eu salto logo também… Por esta é que eu não esperava!).
O meu avô tem sempre tempo e ter tempo é muito bom. Tempo para contar buracos na calçada. Para só pisar as pedras brancas. Para me esconder numa esquina e dar oportunidade ao meu avô de fingir que apanhou um susto.
“Ai que susto!” diz ele. E finge tão bem que eu até fico com medo de lhe fazer mal ao coração. Sempre a voz da minha mãe: “Tu dás cabo do teu avô!” Mas não é verdade.
A verdade é que, por ir sempre à frente, o meu avô nem sonha o que eu passo lá atrás… Porque acontece ter de me agarrar a cordas para me salvar, ter de atravessar pontes prestes a cair, ter de me esconder de um tigre esfomeado…
“Só me salvo se aparecer agora um carro preto ao fundo da rua”, digo eu com toda a coragem do universo. Às vezes salvo-me, às vezes não. Para ganhar novas vidas tenho de saltar ao pé coxinho 34 vezes sem pôr o pé no chão. Se me engano, duplica o castigo.
Os meus vizinhos de cima É que ainda não perceberam bem A piada que é andar por aí. Se os chamo, dizem: Que está a dar desenhos animados… Que é quase hora do lanche… Que é quase hora do jantar… Que está muito vento… Ou que vem lá chuva… Ou que este sol faz mal à cabeça…
Ontem escrevi-lhes uma mensagem com uma pedra vermelha no alcatrão, enquanto o meu avô lia o jornal na fila dos correios. Pensei que eles não tinham percebido, mas ao fim de meia hora vi-os finalmente descer. Tropeçaram cinco vezes (eu contei) porque os pés, coitados, já quase não sabiam andar. Mas ao fim de pouco tempo já a rua era toda nossa.
Jogámos às escondidas, andámos por aí, enquanto o meu avô fazia as palavras cruzadas e falava ao telemóvel. Depois assobiou e viemos a correr como cães. “Está na hora do almoço”, disse ele com cara de zangado, “que vadios que vocês são…”. Mas quando voltámos para casa, ouvi-o dizer à minha mãe que tinha sido uma bela manhã.
Pois eu também gostei muito. E espero que os meus vizinhos passem a andar comigo por aí mais vezes, faça chuva ou faça sol. Porque andar por aí é bom. (Até já ouvi o meu avô dizer isso à minha mãe).
Andar por aí Texto de Isabel Minhós Martins Ilustrações de Madalena Matoso Trabalho realizado por Carlos Samina Bibliotecas Escolares do AVE de Palmela Ano Lectivo 2010/2011