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FERREIRA GULLAR (1930-). POESIA SELECIONADA Um Pouco Acima do Chão (1949) A Luta Corporal (1954) Dentro da Noite Veloz (1975) Poema Sujo (1976) Na Vertigem do Dia (1980) Barulhos (1987) Muitas vozes (1999). Galo galo. Anda no saguão. O cimento esquece o seu último passo.
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FERREIRA GULLAR (1930-)
POESIA SELECIONADA Um Pouco Acima do Chão (1949) A Luta Corporal (1954) Dentro da Noite Veloz (1975) Poema Sujo (1976) Na Vertigem do Dia (1980) Barulhos (1987) Muitas vozes (1999)
Galo galo Anda no saguão. O cimento esquece o seu último passo. Galo: as penas que florescem da carne silenciosa e o duro bico e as unhas e o olho sem amor. Grave solidez. Em que se apoia tal arquitetura? Saberá que, no centro de seu corpo, um grito se elabora? O galo no saguão quieto. Galo galo de alarmante crista, guerreiro, medieval. De córneo bico e esporões, armado contra a morte, passeia. Mede os passos. Para. Inclina a cabeça coroada dentro do silêncio — que faço entre coisas? — de que me defendo?
Outro grito cresce agora no sigilo de seu corpo; grito que, sem essas penas e esporões e crista e sobretudo sem esse olhar de ódio, não seria tão rouco e sangrento. Grito, fruto obscuro e extremo dessa árvore: galo. Mas que, fora dele, é mero complemento de auroras. [A Luta Corporal, 1954] Como, porém, conter, uma vez concluído, o canto obrigatório? Eis que bate as asas, vai morrer, encurva o vertiginoso pescoço donde o canto rubro escoa. Mas a pedra, a tarde, o próprio feroz galo subsistem ao grito. Vê-se: o canto é inútil. O galo permanece — apesar de todo o seu porte marcial — só, desamparado, num saguão do mundo. Pobre ave guerreira!
mar azul mar azul marco azul mar azul marco azul barco azul mar azul marco azul barco azul arco azul marco azul mar azul barco azul arco azul ar azul [Poemas Concretos / Neoconcretos, 1957-1958]
Peleja de Zé Molesta com Tio Sam No edifício da ONU foi preparado o local. Zé Molesta entrou em cena foi saudando o pessoal: "Viva a amizade dos povos, Viva a paz universal!" Tio Sam também chegou todo de fraque e cartola. Virou-se pra Zé Molesta e lhe disse: "Tome um dólar, que brasileiro só presta para receber esmola. Está acabada a disputa, meta no saco a viola". [...] Lançado o seu desafio Zé Molesta se cuidou. Correu depressa pro Rio e aqui se preparou. Falou com Vieira Pinto, Nelson Werneck escutou e nos Cadernos do Povo durante um mês estudou. "O resto sei por mim mesmo que a miséria me ensinou." Enfim foi chegado o dia da disputa mundial. Na cidade de New York fazia um frio infernal.
Zé Molesta olhou pra ele, lhe disse: "Não quero não. Não vim lhe pedir dinheiro mas lhe dar uma lição. Não pense que com seu dólar compra minha opinião, que eu não me chamo Lacerda nem vivo de exploração". Tio Sam ficou sem jeito, guardou o dólar outra vez. Respondeu: "Esse sujeito já se mostrou descortês. Já me faltou com o respeito logo na primeira vez. Vê-se logo que ele é filho de negro e de português". "Não venha com essa conversa de preconceito racial — lhe respondeu Zé Molesta — que isso é conversa boçal. Na minha terra se sabe que todo homem é igual, seja preto seja branco, da França ou do Senegal. Antes um preto distinto do que um rico sem moral.“ [...] Tio Sam disse a Molesta: "Chega de conversação. A moléstia que te ataca já matou muito ladrão. Você quer roubar meu ouro e dividir meu milhão. Comunista em minha terra eu mando é para a prisão".
"Ora veja, minha gente, como esse velho é safado! Apela pra ignorância quando se vê derrotado. Não quer que eu diga a verdade sobre meu povo explorado. Quer me mandar pra cadeia quando ele é o culpado." "Vocês são todos bandidos, chefiados por Fidel — disse Tio Sam bufando, da boca vertendo fel — Querem transformar o mundo num gigantesco quartel, pondo os povos sob as botas da ditadura cruel." "Essa conversa velhaca não me faz baixar a crista — disse Molesta — Me diga quem foi que apoiou Batista? Você deu arma e dinheiro a esse ditador cruel que assassinava, roubava e torturava a granel. Por que era amigo dele e agora é contra Fidel? "Você diz que é contra Cuba porque é contra ditadura. Será que na Nicarágua há democracia pura? Se você luta no mundo pra a liberdade instalar por que é amigo de Franco, de Stroessner e de Salazar?
"Eta que a coisa tá preta! — disse pra si Zé Molesta — Como estou na casa dele, é ele o dono da festa. Tenho que agir com cuidado pra ver se me escapo desta." [...] Gritou: "Abre, minha gente, que eu vou jogar capoeira!" Abriu-se um claro na sala, dividiu-se a multidão. Rolou gente, rolou mesa, rolou guarda pelo chão. Em dois tempos Zé Molesta sumira na confusão. [Romances de Cordel, 1962-1967] A verdade é muito simples e eu vou logo lhe contar. Você não quer liberdade, você deseja é lucrar. Você faz qualquer negócio desde que possa ganhar: vende canhões a Somoza, aviões a Salazar, arma a Alemanha e Formosa pro mercado assegurar." Nessa altura Tio Sam já perdera o rebolado. Gritou: "Chega de conversa, que estou desmoralizado! Desliguem a televisão, deixem o circuito cortado. Mobilizem os fuzileiros, quero esse 'cabra' amarrado. Vamos lhe cortar a língua pra ele ficar calado".
Meu povo, meu poema • Meu povo e meu poema crescem juntos • como cresce no fruto • a árvore nova • No povo meu poema vai nascendo • como no canavial • nasce verde o açúcar • No povo meu poema está maduro • como o sol • na garganta do futuro • Meu povo em meu poema • se reflete • como a espiga se funde em terra fértil • Ao povo seu poema aqui devolvo • menos como quem canta • do que planta [Dentro da Noite Veloz, 1975]
Dois e Dois: Quatro como um tempo de alegria por trás do terror me acena e a noite carrega o dia no seu colo de açucena — sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale-a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade, pequena. Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena Como teus olhos são claros e a tua pele, morena como é azul o oceano e a lagoa, serena [Dentro da Noite Veloz, 1975]
Poema Obsceno • Façam a festa • cantem dancem • que eu faço o poema duro • o poema-murro • sujo • como a miséria brasileira • Não se detenham: • façam a festa • Bethânia Martinho • Clementina • Estação Primeira de Mangueira Salgueiro • gente de Vila Isabel e Madureira • todos • façam • a nossa festa
enquanto eu soco este pilão • este surdo • poema • que não toca no rádio • que o povo não cantará • (mas que nasce dele) • Não se prestará a análises estruturalistas • Não entrará nas antologias oficiais • Obsceno • como o salário de um trabalhador aposentado • o poema • terá o destino dos que habitam o lado escuro do país • — e espreitam. [Na Vertigem do Dia, 1980]
Barulho • Todo poema é feito de ar • apenas: • a mão do poeta • não rasga a madeira • não fere • o metal • a pedra • não tinge de azul • os dedos • quando escreve manhã • ou brisa • ou blusa • de mulher. • O poema • é sem matéria palpável • tudo • o que há nele • é barulho • quando rumoreja • ao sopro da leitura. [Barulhos, 1987]
Lição de um Gato Siamês • Só agora sei • que existe a eternidade: • é a duração • finita • da minha precariedade • O tempo fora • de mim • é relativo • mas não o tempo vivo: esse é eterno porque afetivo — dura eternamente enquanto vivo E como não vivo além do que vivo não é tempo relativo: dura em si mesmo eterno (e transitivo) [Muitas Vozes, 1999]